Os abusados



Abusados são aqueles que traficam no morro e insitam a revolução social? Abusados são os editores que determinam um repórter para uma matéria por achá-lo parecido com os jovens da favela? Abusados são aqueles que entram no morro com o objetivo de relatar a vida do moradores em determinado episódio e saem de lá ameaçados por uma entrevista com o traficante da favela? Ou abusado é Caco Barcellos que relata tudo isso em “Abusado – O Dono do Morro da Dona Marta”?

O que está relatado no livro de Barcellos é um episódio lamentável para o jornalismo brasileiro. Não considero um episódio policial, nem político ou social, é sim um capítulo as ser lamentado na história do jornalismo. A gravação do clipe de Michael Jackson no Morro da Dona Marta foi uma opção dos produtores do cantor que precisavam de cenas de mazelas do terceiro mundo para dizer “They don't care about us”. A negociação para gravação do clipe previa segurança da equipe de produção feita pela própria “força tarefa” do Dona Marta e a não participação da imprensa no evento. Vale a pena citar o esquecido Art. 1º o Código de Ética do Jornalista que diz: “o acesso à informação pública é um direito inerente à condição de vida em sociedade, que não pode ser impedido por nenhum tipo de interesse.”

Diante desse impedimento, os editores do jornais O Dia, O Globo e Jornal do Brasil, em um momento “diretores de cinema” escolheram seus melhores repórteres para a “missão impossível” do Morro Dona Marta. Os critérios de escolha são bem peculiares levando em consideração que os três repórteres deveriam se infiltrar na comunidade como parte dela, tentar fazer imagens e escrever suas matérias sobre a visita de Michael Jackson. O repórter Marcelo Moreira, do Jornal do Brasil, foi escalado porque parecia muito com os jovens da favela principalmente quando usava o boné virado para trás. Nelito Fernandes, do O Globo, foi criado em áreas pobres do Rio de Janeiro e conhecia bem a realidade de comunidades pobres. Enfim, Sílvio Barsetti, do O Dia, um repórter habituado a cobrir reportagens policiais (pena que desta vez foi escalado para atuar no filme “Afundando o jornalismo brasileiro”). Estes foram os critérios editoriais mais preconceituosos que o jornalismo brasileiro já vivenciou.

E lá se foram os três repórtres entrar na favela para serem rapidamente descobertos pelo grupo de Juliano VP, o chefe do tráfico no Dona Marta. A cobertura do evento de Michal Jackson terminou aqui, sendo o próximo capítulo da história a entrevista concedida por Julianao VP aos repórteres fantasiados. Na negociação da entrevista estava prevista a saída do fotógrafos e não divulgação do nome do entrevistado. O traficante confiou na palavra de honra dos três repórteres que entre tantas disparadas ouviram durante a entrevista que “Jornalistas são abutres. Não podem ver carniça.” Vale a pena citar o esquecido Art. 8º o Código de Ética do Jornalista que diz: “sempre que considerar correto e necessário, o jornalista resguardará a origem e identidade das suas fontes de informação.”

Os jornalista dispensaram, não entendo por que motivo, o uso do gravador e apenas anotaram aquela que seria a entrevista mais marcante de suas vidas. Com as informações em mãos os repórteres chegaram em seus respectivos jornais para a consulta ética ao editor: e aí, dar ou não dar o nome do traficante? A decisão dos três jornais foi pela não preservação da fonte. Nelito Fernandes ouviu do seu editor “não tem acordo com bandido” e que sem o nome não haveria reportagem. Marcelo Moreira publicou o nome por achar que o concorrente do O Globo publicaria. Barsetti, forçado pela decisão editorial, também divulgou o nome do traficante. Mesmo ameaçados com um aviso de Juliano VP “Olha cuidado com o que vocês vão escrever, que eu descubro o endereço de vocês”, os repórteres (respaldados pelos editores) assumiram a responsabilidade e cometendo uma série de erros publicaram suas matérias. Os jornalistas se subordinaram ao interesse pelo furo, à concorrência pela informação. Vale a pena repensar essa subordinação. Vale a pena citar o esquecido Art. 6º o Código de Ética do Jornalista que diz: “o exercício da profissão de jornalista é uma atividade de natureza social e finalidade pública, subordinado ao presente Código de Ética.”

O jornalismo é uma das profissões de maior exposição do profissional. Isso porque ele é responsável pelo que escreve, pelas opiniões que forma e pelas repercussões que causa. É por isso que a informação correta prevê problemas e preserva a credibilidade do jornal e do repórter. A grande polêmica da entrevista de Juliano VP foi a frase: “Não cheiro, não bebo. Eu só fumo o mato certo”. As diversas versões desta afirmação causaram a discussão ética sobre a manipulação da informação de maneira imprecisa pelos jornalistas. Nelito Fernandes com prudência não entendeu e não divulgou a frase, foi retaliado pelos editores. Sílvio Barsetti publicou: “Nunca fiz isso. Eu não cheiro, não fumo, não bebo. Só mato o certo”. A última frase é resultado de uma inferência do repórter com base em outras declarações do traficante. Atenção, o papel do repórter não é inferir! Marcelo Moreira publicou: “Eu não bebo, não fumo e não cheio. Meu único vício é matar, mas só mato quem merece morrer”. Tardiamente o repórter admitiu a interpretação errada da fala do traficante. Atenção, o papel do repórter não é interpretar! Vale a pena citar o esquecido Art. 7º o Código de Ética do Jornalista que diz: “o compromisso fundamental do jornalista é com a verdade dos fatos, e seu trabalho se pauta pela precisa apuração dos acontecimentos e sua correta divulgação.”

A entevista rendeu boas manchetes, interessante é perceber a variação de linha editorial nos três veículos Jornal do Brasil. O Dia, O Globo. Uns mais formais, outros mais radicais, alguns apostando em manchetes com trocadilhos outros apostando em palavras que causariam maior embate político e repercussão social. Dessa forma, as três machetes: O Jornal do Brasil: “O dono do Dona Marta”. O Dia: “O tráfico está pronto para a Guerra”e O Globo: “Traficante comanda a segurança e desafia a polícia”.

O resultado de todo este episódio foi a mudança na vida pessoal dos repórteres. A repercussão social e política das matérias renderam comentários do subsecretário, Hélio Luz; do governador, Marcello Alencar e juíza Denise Frossad. O que menos importava naquele momento era analisar o que os formadores de opinião tinham a dizer sobre o que escreveram os formadores de opinião. Importava ver o risco, não calculado, por repórteres e editores ao finalizar estas matérias. Sobre a vida dos três repórteres abusados: Nelito Fernandes, ameaçado, passou um tempo fora do Rio de Janeiro, evitou por um longo período dar nome e endereço. Marcelo Moreira foi ameaçado por telefone, mas resolveu enfrentar o problema na cidade. Sílvio Barsetti tomou cuidados básicos de segurança pessoal. Sobre Juliano VP, saiu do “megaestrelato” do clipe, para a derrota nas capas de jornais. Mas, a derrota para um abusado não significa nada, o famoso dono do Dona Marta só inaugou sua presença nas manchetes brasileiras.